Jair Bolsonaro chega ao poder em outubro de 2018, em meio a um turbilhão político que mesclava ressentimento, oportunismo e uma orquestrada narrativa de salvação moral do país. Sua eleição não foi um fenômeno isolado, mas sim o ápice de um processo de radicalização discursiva, iniciado com as manifestações de 2013 e catalisado por uma ofensiva massiva da direita contra o Partido dos Trabalhadores. Os escândalos da Lava Jato — por mais legítimos que fossem em muitos de seus desdobramentos — foram amplamente instrumentalizados pela extrema-direita para desacreditar todo o campo progressista. Ainda que membros de diversos espectros políticos estivessem envolvidos na corrupção, a ênfase nos erros dos presidentes Lula e Dilma tornou-se conveniente para forjar um novo herói nacional: alguém que se apresentasse como incorruptível, avesso ao “sistema” e, paradoxalmente, oriundo das estruturas mais conservadoras e violentas do próprio sistema.
O contexto econômico era igualmente propício à manipulação. A crise de 2015 e 2016, marcada por recessão, aumento do desemprego e perda de poder aquisitivo da população, feriu profundamente a autoestima do país. A confiança nas instituições políticas e jurídicas despencava. Nesse vácuo de esperança, Bolsonaro emergiu como um símbolo de ordem, segurança e ruptura — apesar de, ironicamente, ser um parlamentar com quase trinta anos de atuação irrelevante e marcado por declarações misóginas, racistas e autoritárias. O sistema, cansado de si mesmo, pariu um filho que prometia destruí-lo.
O eleitorado bolsonarista é multifacetado, mas guarda algumas marcas comuns. Grande parte dele é composta por homens, brancos, com ensino superior, residentes nas regiões Sul e Sudeste, pertencentes à classe média ou alta. Esse grupo encontrou em Bolsonaro uma linguagem direta, simplificada e agressiva, que validava suas frustrações, preconceitos e sensação de superioridade moral. Mas não apenas. O bolsonarismo também atraiu segmentos populares, especialmente evangélicos, trabalhadores informais e militares, encantados com a retórica de segurança pública, armamento da população e defesa dos valores tradicionais. A figura do “cidadão de bem” — branco, hétero, cristão, patriota — foi construída como antagonista da esquerda progressista, dos direitos das minorias, da ciência, da arte e do pensamento crítico.
A ascensão de Bolsonaro foi alavancada por uma aliança ideológica com a extrema-direita global, impulsionada por nomes como Olavo de Carvalho, e pela atuação estratégica de seus filhos — especialmente Eduardo, que se conectou diretamente com o trumpismo e a nova ultradireita internacional. Essa base se nutria de teorias conspiratórias, de narrativas de perseguição e da romantização da ditadura militar. Era a retomada de uma mentalidade autoritária travestida de liberdade. As redes sociais foram o palco onde essa farsa se consolidou: memes, fake news, vídeos emotivos e discursos simplistas mobilizaram massas com eficácia inédita. O bolsonarismo não é apenas uma ideologia — é um afeto, uma pulsão de medo e ódio que se reconhece no espelho do líder.
Psicologicamente, Bolsonaro encarna traços típicos do líder populista autoritário. Sua comunicação é marcada por dicotomias violentas, pela negação do diálogo, pela exaltação da força bruta e pela recusa da empatia. Seu discurso é performático, messiânico e anticientífico. Há nele um componente narcisista evidente, uma necessidade constante de validação pública e um prazer sádico em provocar, humilhar e reduzir o outro a inimigo. Esse padrão se repete em suas decisões políticas, em sua condução da pandemia e em sua recusa em reconhecer derrotas democráticas. Ele governa com ressentimento, e seu combustível é a polarização.
Os filhos de Bolsonaro são peças fundamentais na manutenção dessa engrenagem. Carlos, nas redes, alimenta uma máquina de ódio digital que impulsiona ataques a jornalistas, professores e opositores. Flávio, envolvido em investigações de corrupção e “rachadinhas”, representa o paradoxo do discurso anticorrupção do clã. Eduardo, por sua vez, opera internacionalmente, conectando o bolsonarismo a estratégias de desinformação globais e a redes ultraconservadoras que ameaçam a democracia em diferentes países. Não se trata de um erro individual do pai, mas de uma dinastia que transformou a política brasileira num campo de batalha ideológico, violento e antirrepublicano.
Confiar em figuras como Jair Bolsonaro é aceitar a erosão da democracia como preço por uma falsa sensação de ordem. Seus dogmas — autoritários, violentos, machistas, negacionistas — não oferecem futuro, apenas atraso e divisão. A história nos mostra que líderes que se dizem salvadores em tempos de crise quase sempre se revelam algozes da liberdade. O Brasil flertou perigosamente com esse abismo. É urgente que não volte a se encantar com a sombra travestida de luz.
Confiar em figuras como Jair Bolsonaro é aceitar a erosão da democracia como preço por uma falsa sensação de ordem. Seus dogmas — autoritários, violentos, machistas, negacionistas — não oferecem futuro, apenas atraso e divisão. Se o golpe que tentou articular tivesse sido bem-sucedido, o país mergulharia num estado de exceção disfarçado de moralidade. Teríamos tribunais enfraquecidos, a imprensa silenciada, opositores perseguidos, universidades desfinanciadas e minorias ameaçadas em sua própria existência. A censura retornaria disfarçada de “proteção dos bons costumes”, e o medo tomaria o lugar do debate.
A permanência de um líder com traços sádicos no poder comprometeria não apenas a política institucional, mas o próprio tecido social. O prazer em humilhar, o desprezo pela dor alheia, a recusa ao diálogo e à escuta são traços que se irradiam do topo para a base, contaminando relações, escolas, igrejas e famílias. O que floresce nesse solo é a intolerância, o ódio e a desumanização do outro. O progresso de um país — em ciência, em educação, em saúde, em justiça — exige empatia, pensamento crítico, pluralidade e responsabilidade ética. Nenhuma dessas virtudes encontra abrigo num projeto de poder construído sobre a violência e o ressentimento.
O Brasil já flertou com o autoritarismo antes — e saiu ferido. Repetir esse erro com os olhos abertos seria mais que ingenuidade: seria conivência. É urgente lembrar que a democracia não se destrói de uma vez, mas sim aos poucos, aplaudida por aqueles que confundem ordem com opressão e força com virtude. Que não voltemos a nos encantar com a sombra travestida de luz.
“O futuro do Brasil não se decidirá nos gritos de um salvador, mas no silêncio daqueles que finalmente ousarem pensar.”
– Stéphanie Marocco