Há dias em que a pena treme não de incerteza, mas de angústia. E este é um deles.
Nestes tempos de promessas fáceis e discursos empoados, em que se ergue, com uma mão, o estandarte do progresso, e com a outra se derruba a árvore ainda viva, tramita nas sombras do Congresso Nacional um projeto que ameaça, com espantosa ousadia, os pulmões silenciosos de nossa terra: o Projeto de Lei nº 364, de 2019.
Tal proposição, de lavra do deputado Alceu Moreira — homem de fala firme, mas de estranhas prioridades — pretende desfigurar o Código Florestal pátrio sob o pretexto de dar “segurança jurídica” ao produtor rural. Ora, que segurança é esta, que vem como um punhal nas costas da própria terra? Sob tal manto, deseja-se, nada mais, nada menos, que legalizar o uso agrícola de vastidões inteiras de vegetação nativa — campos naturais do Pampa, Cerrado, serras do Sul e do Sudeste — mesmo que nelas jamais se tenha obtido licença ou autorização legal para o desmate.
Em termos que o povo compreenda: trata-se de dar carta branca a ocupações ilegítimas, como se o tempo ou a ganância tivessem, por si sós, força para apagar os princípios da justiça ambiental. O campo, que antes cantava ao vento, corre o risco de ser calado por tratores.
Fala-se que se poderão transformar, com um mero sopro legislativo, cinquenta milhões de hectares em terra pronta para o gado e o grão. Cinquenta milhões! É chão demais, é silêncio demais. Equivale a quarenta e oito milhões de campos de futebol, se me perdoam o didatismo rude — mas é por ele que muitos talvez entendam a gravidade do que se passa.
Esses campos não são qualquer coisa: são úteros vivos da terra, onde repousam espécies únicas, águas nascentes, ventos antigos. São guardiães da fertilidade, muralhas contra a erosão, tecedores do clima que ainda respiramos. Permitir que tudo isso seja arrancado sob o pretexto de “uso tradicional” é rasgar, com mãos impiedosas, o tecido vivo do artigo 225 de nossa Constituição, que garante a todos nós o direito a um meio ambiente equilibrado.
Mas, minha cara leitora, meu bom leitor, façamos aqui uma pergunta que arde: a quem serve esta proposta? Por que, em pleno século da emergência climática, se deseja aliviar as leis que protegem o pouco que resta de nosso mundo natural?
A resposta não é doce, mas é clara como o sol do meio-dia: este projeto serve, antes de tudo, aos grandes senhores do agronegócio — aqueles que veem a terra não como berço, mas como cifra. A tal “segurança jurídica” de que falam, tantas vezes, não passa de verniz sobre ocupações irregulares e ambições desmedidas. Querem lucrar sobre o que a natureza levou milênios a bordar.
Aqui não se fala de justiça, mas de esperteza disfarçada de lei. E é por isso que tantos se erguem contra essa ameaça: biólogos, universidades, conselhos científicos, organizações que ainda sabem ouvir o rumor dos campos ao entardecer. Eles veem, com os olhos da razão e do afeto, o que muitos se recusam a enxergar.
Este não é um tema técnico, não. É questão de amor à terra. De decência intergeracional. De vergonha na cara. É assunto de mães, de lavradores, de estudantes, de todos os que querem deixar para seus filhos um Brasil onde ainda haja chão fértil, água viva e céu sem fumaça.
Se o Senado da República ainda guarda em suas paredes algum eco de patriotismo, que ele se faça ouvir. Porque o futuro tem ouvidos, e a história não perdoa os que venderam o amanhã por trinta moedas de prata.
Que se ouça, enquanto há tempo, o suspiro dos campos. Pois quando o silêncio for total, será tarde demais para nos arrependermos.
Por uma terra que respire —
Stéphanie Marocco
Redatora de crônicas para tempos de enxada, papel e memória
Uma resposta
Muito bom