Em tempos em que o progresso avança com o ímpeto de uma locomotiva vitoriana, e em que as comunicações transpõem o espaço e o tempo por meio de engenhos que fazem as vezes das antigas missivas, cabe-nos refletir sobre os novos desafios impostos à augusta Justiça. O WhatsApp, esse curioso mensageiro moderno, tornou-se palco de confidências, pactos, injúrias e desventuras, e, assim, transformou-se também em objeto de exame pelos doutos tribunais. Contudo, com o mesmo vigor com que se espalham as palavras nas telas, também se espalham as incertezas quanto à sua fidelidade e integridade. Eis que o Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida em 23 de abril do corrente ano, no AgRg no HC n. 828.054/RN, estabeleceu que não se admite, no processo penal, a prova obtida por meio de espelhamento de conversas no aplicativo WhatsApp sem o devido zelo metodológico e a salvaguarda da cadeia de custódia.
Tal entendimento, embora envolto em razões respeitáveis, como a proteção à intimidade e a prevenção contra fraudes, ergue também um entrave temível: a dificuldade de acesso à tutela jurisdicional por parte dos menos favorecidos. A Corte, zelando pela pureza do processo, rechaçou a validade de mensagens obtidas sem que se observassem os rigores periciais e os registros da origem e integridade dos dados. No caso concreto, tratava-se de uma investigação sobre organização criminosa, cuja prova fundava-se em meros capturas de tela de mensagens, sem laudo pericial, sem descrição da metodologia de extração e, por conseguinte, sem a fé pública necessária para sua admissão.
Não se pode negar que a decisão traz em seu bojo avanços preciosos: estabelece a exigência de prova robusta, a necessidade de rigor técnico e o estímulo à profissionalização da atuação forense digital. Protege-se, com isso, o sagrado direito de defesa, resguarda-se a lisura do processo e evita-se que julgamentos se fundem em provas espúrias. Contudo, cumpre reconhecer que tal rigor, quando não temperado com razoabilidade e empatia, converte-se em barreira. Para a mulher simples que busca provar um assédio sofrido em sua correspondência eletrônica, para o pequeno comerciante que tenta comprovar um acordo verbal convertido em mensagem digital, exigir ata notarial com custo superior a mil reais é tornar a justiça um bem inacessível, como o vinho de cristal reservado aos salões da aristocracia.
A Constituição do Brasil, em seu artigo 5º, inciso XXXV, declara com firmeza que não haverá lesão ou ameaça a direito que escape ao crivo do Judiciário. Mas como cumprir tal promessa quando a exigência de formalismos escapa às mãos do povo? A Justiça, Senhora de olhos vendados, não pode ignorar os clamores de quem a procura com os olhos marejados e as mãos vazias. Urge, pois, buscar alternativas que assegurem a idoneidade das provas sem fechar os portões do Judiciário.
Nesse sentido, despontam plataformas como a Verifact, cuja tecnologia permite registrar, com segurança e autenticidade, as mensagens trocadas em ambientes digitais. Com custo mínimo e respeito aos princípios técnicos de preservação da prova, tais ferramentas recolhem metadados, registram imagens e sons, e emitem relatórios que já encontram respaldo na jurisprudência dos tribunais superiores. O relatório digital, tal como um escrivão moderno, carrega consigo a fé pública da tecnologia e pode servir, com modéstia e eficácia, às partes que dela carecem. Ademais, seria de louvável sabedoria que o benefício da gratuidade de justiça se estendesse à produção da prova digital, permitindo que o próprio juízo requisitasse os meios adequados, aliviando as partes da onerosidade cartorária.
Outrossim, poder-se-ia admitir a fé pública dos advogados quanto às provas digitais, responsabilizando-os nos termos da ética e da lei, mas reconhecendo sua função essencial à administração da justiça. E por fim, nas audiências de justificação, onde o juízo pode examinar com seus próprios olhos os aparelhos, as mensagens e os contextos, abre-se caminho para que a simplicidade seja também aceita como verdade.
É mister que o Direito, como organismo vivo, caminhe ao lado do povo e não à frente dele. Que não se diga que a ciência jurídica se tornou orbe distante da realidade. Pois a Justiça, que se deseja nobre, deve ser também sensível. E se as vozes do povo agora ecoam por meio de mensagens digitadas, que essas vozes sejam ouvidas. Ainda que por um simples print.
Urge, pois, que os operadores do Direito — sejam eles magistrados, advogados, membros do Ministério Público ou servidores diligentes — atentem para o fato de que a Justiça, para ser plena, não pode permanecer cativa da pompa cartorária ou do tecnicismo desmedido. A era das penas de ganso deu lugar aos códigos binários; o átrio do fórum não se limita mais ao mármore e ao silêncio das salas de audiência, mas estende-se aos dispositivos que repousam no bolso de cada cidadão. Negar validade a estas vozes digitais é, em certa medida, negar a historicidade dos novos meios de vida e de relação.
Evidentemente, não se deve abrir mão da segurança e da integridade das provas. Mas que se estabeleça, então, uma doutrina de bom senso, um equilíbrio entre o rigor necessário e a realidade vivida por milhões de brasileiros. Talvez seja chegada a hora de propor reformas legislativas que contemplem expressamente a admissão de meios alternativos de prova digital, desde que acompanhados de garantias mínimas de veracidade, reconhecendo-se, por exemplo, a autenticidade de conteúdos capturados mediante ferramentas tecnológicas auditáveis e de acesso amplo.
Em paralelo, as escolas de Direito, os cursos de formação continuada e os programas de capacitação da magistratura deveriam incluir, com urgência, o estudo aprofundado da prova digital, da cadeia de custódia eletrônica e das possibilidades de certificação acessível. Afinal, o conhecimento é também ponte — e sua ausência, muro invisível.
O clamor que se ouve, portanto, não é o de uma classe abastada em busca de privilégios, mas o sussurro — por vezes abafado — de incontáveis brasileiros que clamam por justiça e são surpreendidos por exigências incompatíveis com sua condição. A decisão do Superior Tribunal de Justiça, conquanto zelosa em seus fundamentos, precisa ser interpretada com prudência e contextualizada com olhar compassivo. Que a letra da lei não afogue o espírito do Direito.
E se cabe à Justiça proteger os vulneráveis, que se reconheça: há vulnerabilidade não apenas na ausência de bens, mas na ausência de meios. Que o Judiciário, este templo da razão, também se faça morada da equidade, lembrando sempre que o maior valor de um sistema jurídico não reside em sua imponência técnica, mas na sua capacidade de alcançar e amparar a todos — inclusive os que, sem voz ou recursos, buscam no WhatsApp o último vestígio de sua dignidade.