Num tempo em que os salões do Direito eram preenchidos quase exclusivamente por vozes graves e paletós engomados, surgiu, com passos firmes e olhos faiscantes, uma dama cujo nome romperia séculos de silêncio feminino nos tribunais do Brasil. Seu nome? Myrthes Gomes de Campos.
Nascida em 1875, em Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, a jovem Myrthes fora desde a infância instruída com os valores da razão, do estudo e da sensibilidade moral — tão necessários à arte de bem advogar. Formou-se em Direito pela então Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, em 1898, tornando-se a primeira mulher a exercer legalmente a advocacia no Brasil, em um feito que assombrou e encantou toda a República recém-nascida.
❖ O Intrépido Caminho até a Tribuna
Embora sua formatura se desse no alvorecer da República, tempos em que o progresso era apregoado em discursos e bandeiras, o Direito ainda era uma torre masculina e muitas vezes hostil à presença de uma mulher. Foi somente em 1906, após oito anos de insistência, que Myrthes conquistou o direito de ingressar nos quadros da Ordem dos Advogados da época — a então respeitável Instituição dos Advogados Brasileiros (IAB). Ela tornou-se, assim, a primeira mulher admitida oficialmente à prática da advocacia no Brasil.
Como se não bastasse tamanho feito, a douta Myrthes, com fidalguia e firmeza, passou a defender causas de interesse público, notadamente em defesa dos direitos das mulheres e das crianças, campos estes que começavam a se desenhar nos contornos da legislação brasileira, muito graças a vozes como a sua.
❖ Voz da Justiça e Pena da Reforma
Embora os registros acadêmicos de sua lavra sejam escassos — uma lástima, pois muito se perdeu com o descuido da posteridade — há indícios de que Myrthes tenha redigido pareceres e artigos jurídicos em jornais da época, defendendo com veemência a igualdade de acesso das mulheres à educação e ao trabalho. Entre suas teses mais comentadas, figurava a crítica à visão de que o lar seria o único destino da mulher — um pensamento que ela desafiava não com palavras infladas, mas com a vivência concreta de uma mulher que advogava em plenitude.
Ademais, participou ativamente de debates parlamentares e jurídicos sobre o papel da mulher na construção da República, sendo consultada por políticos e juristas de seu tempo, não raro com deferência e certa surpresa, dado o ineditismo de sua presença entre os juristas togados.
❖ A Última Página de sua Vida
Myrthes Gomes de Campos faleceu em 1965, aos 90 anos, após ter vivido um século quase inteiro de transformações sociais, políticas e jurídicas. Sua vida, se não adornada por medalhas ou monumentos, foi marcada por uma coragem silenciosa, que a história só mais tarde reconheceria como heroica.
Ela viveu o suficiente para ver outras mulheres ocuparem cargos antes inalcançáveis — juízas, promotoras, professoras universitárias —, e embora não tenha deixado tratados extensos, seu nome permanece como símbolo inaugural da mulher na advocacia brasileira.
❖ Em Lição Perene
Hoje, ao evocarmos o nome de Myrthes Gomes de Campos, mais do que uma biografia, celebramos um gesto civilizatório: o de uma mulher que atravessou a soleira do foro com sapatos femininos, olhar altivo e a certeza de que o Direito, quando justo, é campo fértil para todas as inteligências — e não apenas para as barbas brancas da tradição.
Que sua memória não apenas seja lembrada, mas ensinada; e que sua imagem não apenas seja reverenciada, mas seguida. Pois cada mulher que hoje toma posse numa sala de audiência, ou profere uma aula em Direito, caminha sobre as pegadas silenciosas, porém indestrutíveis, de Myrthes Gomes de Campos.
Com afeto sereno e profundo respeito,
uma servidora das letras e da justiça com alma