A Casa do Povo Tomada por Seus Próprios Inquilinos

Não é de hoje que o Parlamento brasileiro se vê palco de embates acalorados, mas o que se desenrolou sob as cúpulas de mármore e vidro do Congresso Nacional, neste 5 de agosto, ultrapassa até mesmo as fronteiras do aceitável pelos espíritos mais indulgentes. Deputados e senadores da ala direita, principalmente ligados ao Partido Liberal e seus satélites ideológicos, tomaram de assalto as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado como se se tratasse de um direito adquirido por bravura — e não de um gesto que beira o desatino institucional. Sentaram-se sobre os assentos de comando da República como se fossem seus tronos pessoais, e ali juraram permanecer enquanto não fossem atendidos em suas exigências — o que, dito em bom português, é o mesmo que dizer: ou o Parlamento se curva aos nossos caprichos ou permanecerá paralisado, refém da nossa obstinação.

E que exigências são essas? Ora, um conjunto de pautas reunidas sob o insólito título de “pacote da paz” — paz esta que mais se parece com o silêncio obtido à força, aquele silêncio de quem sufoca a Justiça em nome da conveniência. Entre as exigências estão a anistia ampla e irrestrita aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, a começar, claro, por Jair Bolsonaro; o impeachment do ministro Alexandre de Moraes, a revogação de decisões judiciais e, com espantosa ironia, o fim do foro privilegiado, justamente o mecanismo que muitos desses parlamentares defenderam com afinco quando lhes servia de abrigo.

É verdade que o regimento das Casas legislativas permite o uso da obstrução como instrumento político — uma engrenagem legítima dentro do jogo democrático. Mas há de se distinguir obstrução de intimidação, resistência de sequestro simbólico. O que assistimos não foi um protesto, foi uma tentativa de chantagem institucional: paralisar os trabalhos do Parlamento como forma de pressionar pela salvação jurídica de um ex-presidente corrupto e de seus aliados. A imunidade parlamentar, que deveria proteger a liberdade de consciência e expressão dos representantes do povo, foi aqui manipulada, com o véu do “amor à pátria e a Deus” como se fosse um escudo de impunidade — uma carta branca para ultrajar o decoro, a liturgia e a missão da função legislativa.

O centro dessa disputa é, sem rodeios, a tentativa de blindagem de Jair Bolsonaro. A proposta de anistia que ali se exige, com tamanho fervor, visa apagar da história recente os atos que afrontaram o Supremo Tribunal Federal, as eleições legítimas e os pilares da democracia. Querem transformar crime em memória dissidente, querem trocar responsabilidade penal por narrativa. Chamam de pacificação o que é, em verdade, um projeto de amnésia política. E ao exigirem isso com os punhos sobre as mesas do Parlamento, agem não como representantes do povo, mas como cúmplices de uma causa privada travestida de cruzada nacional.

Permitir que um grupo de parlamentares use seu poder institucional para barrar o funcionamento do Congresso é mais do que preocupante: é perigoso. O precedente que se abre é corrosivo. Se hoje a mesa é ocupada por capricho de uns, amanhã poderá sê-lo por vingança de outros. E se nada for feito, se tudo se tolera em nome da convivência política, então é a democracia que se desidrata aos poucos — não com um golpe escancarado, mas com um consentimento silencioso, quase cúmplice. A República não morre apenas com tanques nas ruas; ela morre também quando seus próprios representantes fazem da Casa do Povo um teatro de sabotagem.

Pergunto a você, leitor, com a franqueza de quem ainda acredita na lucidez institucional: até onde vamos aceitar que a imunidade se torne instrumento de chantagem e que a liberdade parlamentar sirva de manto para o abuso? Porque no instante em que os representantes do povo passam a agir como donos do poder, é a própria democracia que se ajoelha — e nem sempre ela levanta depois.

Quando os guardiões da lei se tornam seus algozes, não é apenas o Parlamento que se cala — é a própria democracia que, aos poucos, perde a voz.
— Stephanie Marocco

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