A Pátria no Colo — Ou Quando a Infância Vira Trincheira

Hoje, em pleno coração da República, uma cena de arrancar o fôlego, mas não pela beleza — pela vergonha. Uma deputada, envolta em delírios patrióticos, atravessou as portas da Câmara com sua filha de quatro meses nos braços, como se entrasse em templo sagrado. Mas o templo estava tomado: gritaria, cartazes, afrontas — o caos disfarçado de heroísmo. E ali, naquele picadeiro político, repousava uma criança que nada compreende do jogo sujo que se joga no Parlamento.

Não, meus caros leitores, não era um gesto de ternura. Era teatro. Teatro mal ensaiado, de gosto duvidoso, feito para causar comoção, gerar manchete e encobrir, com véu de maternidade, a desordem proposital. A criança virou troféu de guerra. E como chamar isso senão o que é? Uso político de uma alma inocente. Um ultraje ao bom senso. Um tapa na cara do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura, em letras claras, o direito à dignidade, ao respeito, à proteção contra tudo que cause medo, vexame, desconforto.

Mas o que é um artigo de lei diante do fanatismo? Uma folha ao vento, nada mais. E o bolsonarismo — essa febre que ainda nos consome — tem sede de espetáculo. Confunde fé com farsa, família com farsa, e agora, pior, confunde cuidado com propaganda. Usar uma criança em meio a um motim parlamentar não é ato de coragem maternal — é imprudência travestida de patriotismo. Um tipo de loucura mansa, mas contagiosa, que contorce símbolos e distorce afetos.

Essa mulher não é só mãe. É fanática. É mais devota de ídolos políticos do que zeladora do bem-estar da filha. Talvez nem perceba — o fanatismo é cego, e mais cego ainda quando sorri. E é isso que mais me espanta: sorriem enquanto tomam a Casa do Povo. Gritam “Deus”, “família”, “liberdade”, mas não dizem nada sobre o povo, nem sobre as mães reais que criam seus filhos longe das câmeras, das sessões tumultuadas e de qualquer privilegio maternal.

O que se viu hoje foi uma inversão cruel dos valores que dizem defender. Quem protege a infância não a expõe ao circo. Quem ama a democracia não encena revoluções de palco. Quem preza a maternidade não a transforma em palanque. O bolsonarismo, como um trem desgovernado, atropela tudo: instituições, decoro, verdade, e agora — a infância.

E isso não é só triste. É perigoso.

Porque o gesto de hoje é semente. Semente de um Brasil onde o poder vale mais que o pudor, onde se ensina aos pequenos que vale tudo em nome de uma causa — mesmo que essa causa seja só manter-se no poder. Crianças crescem, sabe? Crescem assistindo. Crescem ouvindo. Crescem moldadas por símbolos. E quando a política vira teatro e os filhos viram escudo, o que se planta é uma geração que não saberá distinguir coragem de espetáculo, verdade de grito, amor de fanatismo.

O futuro começa agora. E o agora está doente.

Da pena inquieta e eterna observadora da Justiça e dos desvios que a ameaçam,

Stéphanie Marocco.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

A CONDIÇÃO HUMANA – HANNA ARENDT

Ao espírito atento que me lê, ofereço estas reflexões com delicadeza e verdade. Permita-me hoje conduzi-lo, gentil leitor, por veredas mais densas e filosóficas, mas

Ler Mais