A Voz do Morro e o Silêncio da Lei: Considerações Sobre o Projeto de Lei nº 26 de 2025

Rio de Janeiro, Julho de 2025. Eis que se ergue das brumas legislativas o Projeto de Lei n.º 26/2025, vulgarmente nomeado “Lei Anti-Orum”, iniciativa oriunda do gabinete da vereadora Amanda Vettorazzo, mas não apenas ela, há outras iniciativas parecidas proposta na esfera da União. Tal proposta busca regulamentar — e quiçá extirpar — a manifestação artística que, segundo seus artífices, macula a infância e envenena os jovens com cantigas do morro, palavras de pólvora, versos de dor. O projeto, envolto em ares de zelo institucional, visa impedir que o erário público seja destinado à contratação de artistas que expressem, em suas composições, qualquer simpatia ou menção ao crime, à violência, às drogas, ou à vida dita “desviada dos trilhos morais”. Sua gênese, é sabido, remonta à comoção popular em torno da figura do jovem cantor ORUM — filho, dizem, de notório nome do tráfico local — cuja presença em palco durante festividade oficial causou furor nos salões políticos e na imprensa ávida por escândalo. Mas pergunto, com a pena que sangra e o coração que pulsa: é mesmo ORUM a ameaça? Ou será a realidade que ele canta o verdadeiro incômodo? Pois sua música não cria monstros — apenas os nomeia.

A lei propõe um ideal: proteger os menores da influência deletéria de ritmos que, por sua franqueza, desnudam o cotidiano de muitos lares das favelas. Mas proteger do quê, senhores? Da vida que tais crianças já conhecem melhor que as cartilhas escolares? Das vielas em que o crime é vizinho antes mesmo do nascer do sol? De uma verdade que o Estado se recusa a encarar de frente, preferindo o silêncio à transformação? É mister recordar: não se planta a paz com tesouras. Nem se muda o destino de um povo calando suas canções. A censura, ainda que disfarçada de zelo, caminha como espectro antigo entre nós — ora em farda, ora em toga, ora em microfone dourado de tribuna. E aqui se faz presente, não contra a violência, mas contra quem ousa narrá-la com cadência própria, batida de tambor e eco de revolta.

Convém também refletir sobre os critérios de aprovação artística que tal lei propõe. Pois o que pareceria imparcial em sua letra, se mostra de uma seletividade atroz em sua prática. Zé Felipe pode cantar sobre beber até cair, sobre corpos como troféus, sobre luxúrias desmedidas — e não escandaliza. Já ORUM, que canta a favela e suas mazelas, é julgado como um herege sonoro. E por quê? Porque um nasceu herdeiro, cercado de mármore e proteção. O outro é filho do barro, da bala, do descaso. Um é astro de condomínio fechado; o outro, relâmpago de rua. Um representa o conforto; o outro, o desconforto do espelho. E, assim, o palco se torna trincheira. De um lado, os cantores de berço e sobrenome. De outro, os poetas das lajes — que com rima e dor ousam ascender economicamente, perturbando os cochilos dos bem-nascidos em seus condomínios seguros.

Há algo de trágico e irônico no projeto: ele quer proibir o jovem ORUM de cantar sobre o crime — mas não move uma vírgula para evitar que ele viva nele. Não se reforma a escola, não se garante moradia digna, não se oferece acesso real à arte — apenas se pune a arte feita com os cacos de um cotidiano partido. A crítica aqui não é ao desejo de se evitar a apologia ao crime, à arma, à droga. É, sim, à hipocrisia de um Estado que tapa os ouvidos para a dor enquanto tenta calar os que a narram. O que se pretende, no fundo, não é proteger a infância — é preservar o status quo, impedir que esses meninos de chinelo e boné rompam os muros invisíveis da exclusão, subam aos palcos e, com suas palavras, causem desconforto aos senhores de paletó.

Encerrar este ensaio sem um apelo seria indelicado. Proibir as vozes da favela é mais do que política: é um gesto de guerra simbólica. Porque onde não se pode cantar, tampouco se pode sonhar. E se a música de ORUM é a trilha sonora de uma guerra não declarada, que se entenda: calá-lo não apagará o incêndio. Apenas o esconderá sob tapetes bordados de hipocrisia. Quem sabe, num futuro não tão distante, tenhamos políticos que, em vez de silenciar o canto, ergam escolas de música em cada esquina. Até lá, que ORUM cante. Pois a dor dele é o silêncio que a elite se recusa a ouvir.

“Não há justiça onde há silêncio, nem legalidade onde há segredo.”

Reflexões Jurídicas

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