Que tempos estranhos, pois a infância não mais se contenta com seus recantos reservados e cheios de brinquedos; ela foi convidada — ou empurrada — aos grandes salões da internet, onde cada riso, cada gesto, cada suspiro terno tem público, curtida e, muitas vezes, patrocínio. A infância, esse reino de imaginação sonhos tranquilos, deixa de existir em sua pureza, e se transforma num espetáculo diário, medido em visualizações, compartilhamentos, com monetização embutida nas pausas para respirar — como quem, sem perceber, já vendeu a alma ao diabo digital.
Mas você leitor e leitora, devem estar se perguntando como isso acorre?
Bom, através dos algoritmos, invisíveis maestros dessa ópera pública, regem a circulação do que encanta — e sempre encanta o adulto adiantado, que ama ver criança falando como gente grande, fazendo dancinhas impactantes, se vestindo com maturidade precoce. A lógica é cruel: performar contentamentos, vestir gestos de ator, articular o infantil com o adulto para ganhar audiência, e quem se sai melhor, ou mais cedo, ganha recompensa — seja em dinheiro, seja em tenções inconscientes de validação.
Assim, eis que surgem as crianças-celebridade: microcelebridades cujas vidas pessoais são vitrines cuidadosamente arrumadas. Cuidadoras convertidas em agentes, lares convertidos em cenários profissionais — não se sabe ao certo onde começa a brincadeira e onde começa o contrato, como quem joga a criança aos lobos e torce para que saia ilesa. O encanto complica-se quando os olhares externos penetram com comentários impiedosos, expectativas insólitas ou, pior ainda, desejos mal direcionados. Sobram sorrisos treinados e falta de silêncio – não o silêncio do autoconhecimento, mas o do não-ser-observado.
Quer um bom exemplo desse show de horrores? Vejamos aKamilinha, tão pequenina em idade, tão grande em exposição: nome que circula, sussurra e brilha nas redes, com pessoas que comentam, compartilham e se encantam — às vezes se preocupam, outras aplaudem. É o palco infantil em carne viva. E quantas “Bellas”, “Belinhas” — sem sobrenome ou com sobrenomes que se perderam na pressa digital — circulam sem nomes, mas com rostos e rotinas expostas, vozes transformadas em algoritmo? São todas elas, anônimas ou viralizadas, parte desse fenômeno que convoca a infância ao espaço público, exigindo presença, performance, rendimento.
E não se cala o coro dos que estudam, criticam e exigem proteção. Philip Atiba Goff lança seu olhar clínico sobre o viés que retira da criança — especialmente a negra — o manto da inocência e o substitui por suspeita. Monique W. Morris ecoa isso ao falar da criminalização e da perda de indulgência — não merecem errar, não merecem crescer, não são vistos como crianças. A UNICEF, organismos internacionais, os parlamentos — todos gritam por regulamentações que sejam feitas com tempo, fundo de tutela, proteção patrimonial, limites éticos aos algoritmos. Mas no rastro da boa intenção caminha a lentidão burocrática, enquanto a máquina digital engole crianças ainda em crescimento.
Antes, a infância tinha sua música própria — risadas livres, silêncio compartilhado, segredos entre travesseiros, tempo para crescer o que não se sabia nomear. Hoje, a doença da pressa digital transforma esse tempo em números: views, seguidores, likes. As crianças passam a medir o valor que têm por métricas impostas — e, cedo demais, se deparam com a sombra do impacto: ansiedade, medo, desconforto com o próprio corpo que, de repente, não cabe mais nas exigências da plateia invisível.
E entãoquando a plateia some, restam traumas, memórias estouradas e um silêncio que ronca por dentro. A criança-celebridade, ao virar adulto, pode encontrar portas fechadas — identidade torta, autoimagem corroída, dúvidas sobre o que é autêntico ou encenado. E o mundo vigoroso do espetáculo infantil pode ter deixado heranças de culpa, arrependimento ou desgaste emocional profundo.
E se este espetáculo não tiver cortinas para fechar, o enredo será sempre o mesmo: crianças exaustas, memórias feridas, e um público que já partiu para o próximo show. É nesse ponto que o aplauso deve se calar para dar lugar à ação — pois nenhuma plateia vale mais do que a integridade de quem ainda está aprendendo a ser.
Urgente se faz, regulamentações que impeçam a mercantilização precoce — campos para salvaguardar rendimentos infantis, proteção legal severa para contratos, limites claros sobre exposição. Mães, pais e professores: encarem a mídia com olhos críticos, protejam cada tempo que ainda resiste à superficialidade. As plataformas: moderação eficaz, limites ao conteúdo sexualizado, treinamento para reconhecer o que não deveria ser visto. E, fundamental, desarticular o viés que diz que criança é adulta demais para errar, que ela sabe o que diz — quando, muitas vezes, não sabe nem o que sente.
E agora, leitor curioso: se a infância é esse jardim frágil que floresce melhor na sombra do cuidado e viceja na lentidão dos dias, não deveríamos fechar o portão dos salões eletrônicos até ela estar pronta para o mundo, e não o contrário?
Com estima e firmeza de espírito,
Stéphanie Marocco.