De alma inquieta e ouvidos atentos ao murmúrio dos becos e avenidas, lanço-me a contar um episódio que vem tirando o sono — e o sustento — de muitos trabalhadores em Niterói, essa senhora Cidade à beira da Guanabara, onde o progresso anda a passos apressados e nem sempre justos.
Desde o alvorecer do ano, a Prefeitura, com seus agentes de farda engomada e olhar severo, tem armado verdadeiras operações de caça a motocicletas — não, não a todas, apenas àquelas com o “desatino” de fazer barulho demais. De Santa Rosa a Pendotiba, passando por Icaraí e pelo Centro, multiplicam-se blitzes que buscam calar escapamentos ruidosos como se fossem sinos a anunciar o fim dos tempos.
Amparam-se na Lei Municipal nº 3.661, de 2021 — essa mesma que proíbe qualquer suspiro metálico que fuja ao padrão estabelecido. Uma infração classificada como gravíssima, daquelas que doem não só no bolso (R$ 195,23 de multa, cinco pontos na carteira), mas também na alma de quem depende do motor para viver. Já passam de mil e seiscentas as abordagens, e trezentas as punições — e há motos que, coitadas, mal chegaram à garagem e já foram recolhidas como se fossem contrabando.
Ora, não se trata de defender a algazarra. O sossego público, esse bem tão escasso em tempos modernos, há de ser respeitado. Mas quando o Estado se põe a punir, seria de bom tom que visse além da ficha técnica — e notasse, por trás do capacete, um rosto queimado de sol e uma história que se repete, dia após dia, sem descanso nem folga.
Falo do motoboy, cavaleiro urbano do século XXI, que não ruge por gosto, mas por necessidade. A moto que usa, muitas vezes comprada com sacrifício e abençoada em oração, já chegou com o escapamento gasto, o barulho alto, a quilometragem vencida. E não é por falta de vontade que o trabalhador não troca a peça — é por falta de dinheiro. Simples assim.
Mas o que faz o poder público? Em vez de compreender, castiga. Em vez de oferecer caminhos, fecha-os. O sujeito sai para entregar um remédio, um almoço, um alento — e volta sem moto, sem dia de trabalho, sem alternativa. De um lado, o peso da multa; do outro, o peso da geladeira vazia.
E então, pergunto com toda a revolta que um coração honesto pode suportar: onde está esse mesmo ímpeto quando se trata de fiscalizar as plataformas que exploram esses trabalhadores? Onde estão as multas para o iFood, esse gigante que engole horas, suor e saúde alheia em troca de centavos? É fácil mirar no elo mais fraco. O difícil — e necessário — seria mirar nas estruturas que tornam esse fragor inevitável.
Nada de campanhas públicas, nem descontos para regularizar a moto, nem oficinas parceiras. Nenhuma política que ofereça, ao menos, a chance de andar na linha sem cair no abismo. Sequer pensam em cobrar das empresas de entrega alguma responsabilidade solidária — fosse por bom senso, fosse por justiça. Uma simples iniciativa de reputação, por exemplo: que o barulho da moto pesasse contra a imagem da empresa. Mas não. É pedir demais de quem, há tempos, esqueceu de ouvir.
Termino este relato, não como quem grita ao vento, mas como quem acende uma lamparina na esperança de que alguém veja. O Estado precisa aprender a olhar — com humanidade. Não se governa apenas com decreto e estatística. Governa-se com alma. Que se puna quando for justo. Mas que se compreenda, sobretudo, quando for humano.
Com o coração ainda aos soluços e a pena mergulhada na ternura dos que creem num amanhã mais digno,
Com estima e firmeza de espírito,
Stéphanie Marocco
Redatora de crônicas para tempos de toga e elegância jurídica





