Feudos Cartorários: entre senhores, servos e a ilusão do Direito como realeza

Ao leitor de espírito atento e coração lúcido, convido a uma breve travessia por entre as colunas de mármore do Judiciário — ou melhor dizendo, por entre as torres, masmorras e salões de uma estrutura que, sob a aparência moderna da Constituição, por vezes opera segundo as velhas engrenagens do feudalismo medieval.

Sim, senhoras e senhores: feudos. Não castelos de pedra, mas gabinetes acarpetados. Não espadas, mas carimbos. Não cavaleiros, mas serventuários. Assim têm-se erguido, em pleno século XXI, pequenos domínios dentro dos tribunais, onde cada cartório se governa como um senhorio autônomo — dotado de seus próprios códigos, suas ordens não escritas e sua forma particular de compreender, ou ignorar, o Direito.

A metáfora, por mais fantasiosa que pareça, sustenta-se por si. Os cartórios são os feudos modernos, regidos por juízes e chefes de serventia que, embora vinculados a um corpo institucional maior, operam muitas vezes como verdadeiros senhores feudais: interpretam normas administrativas à sua própria guisa, negam vigência a provimentos internos ou a resoluções do CNJ, e resistem, com vigor silencioso, a qualquer tentativa de uniformização que lhes pareça descer das instâncias superiores.

O advogado, nesse cenário, é o servo da gleba jurídica: para cada cartório, precisa aprender um novo dialeto procedimental, adaptar sua petição à etiqueta local, curvar-se à autoridade invisível de regras que não se encontram em código algum, senão nos corredores e cochichos. Pede prazos que lhe são negados não por força da lei, mas por juízo do costume. Tenta cumprir despachos que mudam conforme o vento da interpretação interna.

Acima deles, os tribunais de segunda instância — nossos nobres de toga — ora fiscalizam, ora condescendem, muitas vezes preferindo manter a ordem de vassalagem intacta, sob o argumento da “autonomia funcional” ou da “liberdade do magistrado”. E ao final da cadeia, em torres altas e distantes, estão os tribunais superiores, os quais, qual reis constitucionais, observam de longe os clamores que sobem das planícies do processo, por vezes atendendo, por vezes mantendo o silêncio régio que confunde prudência com inércia.

Em A República, Platão já nos alertava que o verdadeiro governante é aquele que reina não por desejo de poder, mas por recusa à injustiça. Para ele, o bom juiz seria um filósofo por excelência: um amante da sabedoria, alguém que compreende o bem comum e, por isso, não se perde na vaidade das formas ou nos caprichos da função. O que vemos, porém, é que muitos dos nossos modernos senhores cartorários ignoram essa lição ancestral e governam mais como tiranetes da burocracia do que como guardiões da justiça.

Do ponto de vista psicológico — e permitam-me os senhores o desvio filosófico — esta estrutura revela o que Byung-Chul Han denomina como o “excesso de positividade”: um sistema onde a liberdade aparente oculta novas formas de dominação simbólica. O formalismo rígido, o apego a micro regras internas, a blindagem contra qualquer olhar externo — tudo isso compõe uma estética de poder que oprime suavemente, sob o pretexto de ordem.

Judith Butler também nos oferece lentes potentes: ao refletir sobre o poder performativo, ela nos mostra como certos papéis – inclusive o da autoridade jurídica – são repetidos com tanta intensidade que se tornam naturalizados, como se um juiz estivesse ontologicamente acima dos demais. O feudo cartorário se sustenta, portanto, não apenas por normas, mas por gestos reiterados de exclusão e obediência simbólica.

É nesse cenário que advogados tornam-se súditos e o cidadão, mero visitante. Quando os juízes esquecem que são servidores da lei e passam a crer que a lei lhes serve; quando os cartórios operam como muralhas em vez de pontes; quando a liturgia do cargo se sobrepõe ao sentido de Justiça — aí, minha cara leitora, o Direito deixa de ser reino e torna-se feudo.

Não se trata aqui de clamar por revoluções, tampouco por iconoclastias institucionais. Trata-se, apenas, de recordar que o edifício da Justiça foi concebido para servir à coletividade, e não para reproduzir dinâmicas senhoriais sob a luz branda dos computadores e das atas.

Urge que devolvamos ao advogado sua condição de cidadão e intérprete da lei, e que lembremos aos senhores dos cartórios que toda toga é, antes de mais nada, um manto de serviço — e não de soberania.

E se algum coração se inquietar ao ler estas linhas, que o faça não por ofensa, mas por reconhecimento: pois todo feudo, quando iluminado, pode voltar a ser parte do reino.

Com afeto sereno e profundo respeito,
uma servidora das letras e da justiça com alma

Stéphanie Marocco.

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